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1 de agosto de 2010

LEIA E REFLITA

Palmada educa?

Publicado: 31/07/2010 por Revista Espaço Acadêmico em autor, educação
por RAYMUNDO DE LIMA*
Alguns pais estão resgatando o autoritarismo da educação tradicional, ameaçando ou batendo nos filhos, com o falso argumento de que a nova geração precisa de disciplina e de obediência. Algumas escolas particulares também fazem propaganda de seu método rigoroso e disciplinador, atraindo principalmente os pais fracassados e autoritários camuflados desejosos pela terceirização da educação dos filhos.
A ‘pedagogia da palmada’ vem influenciando até mesmo alguns especialistas que acreditam que é preciso colocar freio na indisciplina. Marilda Lipp, doutora em psicologia do comportamento, escreveu um artigo cujo título era justamente “A palmada educa” (Veja, 01/05/96). Embora a psicóloga ressaltasse que a criança não deve ser punida na primeira vez que erra; que os pais devem sempre explicar o porque ela deve apanhar e alertá-la sobre as conseqüências de seus atos, a verdade é que o artigo tinha um tom, começando pelo título, de que a palmada tem o poder de educar.
Em verdade “a palmada deseduca”. Esse é o slogan da campanha que o Laboratório de Estudos da Criança (LACRI), da Universidade de São Paulo, quer erradicar através de uma petição, desestimular pais e educadores a bater nas crianças, nem que seja eventualmente. A discussão sobre castigos corporais também chegou a Brasília. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados está mobilizando seminários sobre o tema. O presidente da comissão, deputado Marcos Rolim (PT-RS), quer desencadear uma campanha para conscientizar a população e apresentar experiências internacionais.
Países de 1º. mundo, hoje, “autorizam” pais e professores de usarem os antigos instrumentos de castigos (ou tortura) como palmatória, chicotinho, varinha, corda, cinto, etc. Uma amiga que viveu durante um ano na cidade de Lion, França, disse-me que são vendidos chicotinhos especialmente feitos para bater em crianças desobedientes. A Inglaterra que ficou conhecida internacionalmente pela experiência libertária da Escola de Summerhill, só suspendeu o castigo físico do seu sistema educacional em 1989. Recentemente (2004), o parlamento inglês voltou a discutiu a necessidade de aplicar castigos físicos como medida educacional legítima.
Nos países escandinavos, embora a educação seja rígida, existem leis que proíbem os pais usar violência contra seus filhos. As crianças podem fazer denúncias, e assistentes sociais ficam de plantão para evitar essa pratica.
Não faz muito tempo que Cingapura, país de regime político autoritário e um sistema financeiro importante, localizado na Ásia, impôs uma pena judiciária de chibatadas a um jovem norte-americano que transgrediu as severas leis daquele país.
Apesar do liberalismo ‘oficial’ e aparente permissividade educativa dos norte-americanos, a maioria da população dos EUA consultada não apenas aprovou a pena judiciária de Cingapura para o crime de tráfico de drogas como gostaria que sua justiça também fizesse uso de castigos físicos para transgressores da lei. Para reforçar essa atitude repressiva, uma pesquisa divulgada declara que 61% dos pais norte-americanos aprovavam castigos físicos como uma forma de punição válida, e 57% disseram acreditar que até mesmo bebês de seis meses podem merecer uma surra.[1]
Palmada em casa e palmatória na escola
O castigo físico em crianças foi introduzido no Brasil pelos padres jesuítas no século XVI, causando indignação nos indígenas, que repudiavam o ato de bater em crianças. A correção, como explica a historiadora Mary Del Priore, no livro História das Crianças no Brasil, era considerada uma forma de amor. O excesso de carinho devia ser evitado porque fazia mal aos filhos. A relação entre os pais e suas crianças teria de ser o espelho do amor divino, segundo o qual, amar é castigar os erros e dar exemplo de vida correta. Os castigos disciplinares devem ser aplicados não apenas para corrigir as chamadas ‘malcriações’ e ‘birras’ como também serve para sacudir a preguiça que é considerada culpada de muitos erros e ignorâncias desde cedo no espírito da criança.
A perspectiva judaico-cristã sempre foi favorável por uma educação por meio de castigos físicos. A historiadora comenta que “a partir da segunda metade do século XVIII, com o estabelecimento das chamadas aulas régias, a palmatória era o instrumento dessa época, dirigido aos professores”.
“Ao expulsar os jesuítas de Portugal e de suas colônias, em 1760, o Marquês de Pombal pôs fim à principal forma de educação vigente no Brasil. Segundo o pesquisador Luiz Kelly Martins dos Santos, a Reforma Pombalina foi catastrófica porque era um plano político, não pedagógico.”O alvará assinado pelo rei de Portugal e aplicado no Brasil (seria precursor da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira) introduziu normas punitivas a professores e alunos – nestes últimos, podia-se aplicar castigos físicos como palmatória e ajoelhar-se no milho”.[2]
No Rio de Janeiro onde hoje existe um Museu da Tecnologia da Educação – que faz parte do Instituto de Pesquisas Avançadas em Educação (Ipae) -, levantou uma pesquisa histórica sobre a palmatória. Curioso é que “o instrumento que está exposto e faz parte do nosso acervo é inglês, e não brasileiro”, declara o pesquisador Martins dos Santos, um dos organizadores do museu, ao explicar a diferença do formato. “A palmatória usada no Brasil era uma haste que terminava em uma peça circular de madeira que, por sua vez, possuía furos em forma de cruz. Quem apanhava com o instrumento ficava com bolhas na mão similares aos desenhos dos furos”.
A palmatória tornou-se um símbolo de disciplina na educação da geração do Brasil Colonial. Mas foi ainda muito usada depois da Independência. “Era comum nas formaturas de fim de ano os alunos presentearem os professores com palmatórias feitas de madeira compensada ou papelão, como forma de mostrarem submissão à autoridade”, afirma Martins dos Santos.
Muitos dos instrumentos expostos no Museu da Educação ainda são usados hoje em dia. Basta ler os jornais da capital e principalmente do interior do Brasil para encontrarmos notícias sobre diversos tipos de castigos físicos, puxões de orelha, obrigar a criança ajoelhar-se no milho, e casos escabrosos que configuram crime de tortura realizado em casa ou em escola.
A ideologia e eficácia dos castigos físicos
No estudo de Michel Foucault (1977), o uso do castigo físico faz parte de um sistema de controle de uma sociedade investida do sentido da ordem e da lei. A vigilância enreda a todos, e não apenas as crianças. As instituições do século 18, ligadas por uma espécie de ‘rede’ de crenças, valores e hábitos, geraram um sistema de vigilância, controle e punição desde a família, até prisão, passando pela escola ou serviço militar. A educação tradicional era autoritária porque podia impor todo o seu saber e poder para “torcer o pepino desde pequeno”. Era um sistema educativo que acreditava ser preciso formar um cidadão “disciplinado” para ser “dócil” à nova ordem moderna. Mas, em nossa época denominada pós-moderna, querer resgatar o castigo físico como método educativo, além de ser um contra-senso é uma prática fora de lugar. Os pais que ousam bater nos filhos, no fundo, carecem de palavras e de espírito democrático. Funcionam como o terrorismo que através de seu ato – bruto, rude, bárbaro – pretendem eliminar o sentido das palavras e o valor do diálogo na construção do verdadeiro sujeito. Mais ainda, eles acreditam que são donos do corpo dos filhos assim como era o senhor de escravos; alguns professores ainda vivem no mundo delirante dos anos 1970, acreditando que podem dirigir os corpos, os corações e o futuro dos seus alunos.
Alain [Émile Chartier - 1868-1951), outro pensador francês, embora sendo conservador e positivista, já em sua época recomendava, primeiro, aos pais “educar”, e à escola “ensinar”. Cada qual deve fazer bem a sua função. Os pais devem “educar” com firmeza, “mas não com pancadas”.
Há controvérsias se deve ou não usar de vez em quando uma palmadinha, como recurso último para interromper a repetição das birras ou ‘malcriações’ infantis que indicam ruptura dos limites aceitáveis. A posição favorável ao uso de “palmada” sinaliza que esse natural uso da “a mão aberta” (e não o uso de instrumentos como o cinto, o chicote, que extrapolariam o sentido de correção educativa) tem intenção de ser um ato complementar à educação por palavras. Todavia, atualmente existe a tendência no mundo ocidental de que a palmada não funciona como método educativo, pelo contrário, causa ressentimento, dor, ou seja, pode causar um efeito contrário à educação. O ato de bater reforça, sem dúvida, o autoritarismo e sadismo do mais forte sobre o mais fraco, no caso, a criança, que termina ficando ressentida e com raiva. Existe suspeita de que o ato de bater pode levar o agressor a uma compulsão à repetição, isto é, a adquirir prazer e gozo sádico em bater.
O professor da Faculdade de Educação da USP e escritor de vários livros sobre educação e ensino escolar, Julio Groppa Aquino e a psicóloga e colunista da Folha de S. Paulo, Rosely Sayão, disseram em uma mesa-redonda em Maringá que, quando bem posicionados no seu papel de pai e mãe não precisam usar de violência para corrigir erros ou evitar reincidências dos filhos. Por exemplo, existem atividades passíveis de “negociação”, como a hora de chegar em casa, mas existem as “obrigatórias” – tais como tomar banho ou ir à escola mesmo não gostando – dependem do posicionamento dos pais como autoridade para que os filhos obedeçam. Ou seja, se os pais perderam o autocontrole e partem para agressões físicas, é porque já vinham abdicando o lugar de autoridade necessário aos pais.
Vivemos numa época de crise de paradigmas, inclusive no campo da educação. Ninguém tem a verdade e existe confusão quanto qual a melhor maneira de educar. A falta de bom senso de alguns pais, bem como também a contradição entre a teoria e a prática de outros supostamente melhor preparados, são visíveis e comentados. Pena que nunca os pais ficam sabendo diretamente sobre o seu erro, salvo quando são chamados na escola ou quando vão à terapia. Conhecemos educadores profissionais que dizem serem contra o castigo físico, mas o desmentem na prática. Quando tomam consciência sentem culpa. Há quem não usa castigo físico, mas abusa de castigo psicológico, que pode ser ter efeito mais traumático para a formação da personalidade da criança. Castigo psicológico não deixa de ser também uma forma de violência que marca para sempre a alma do sujeito com sofrimento, embora deixe intacto corpo da vítima.
Para a ABRAPIA (Associação Brasileira Pais, Infância e Adolescência), violência psicológica é rejeição, depreciação, discriminação, desrespeito, desqualificação, negligência, bullying (intimidação, perseguição e isolamento da criança), omissão de responsabilidades e punições exageradas. Por exemplo, punir uma criança para ficar em casa enquanto toda a família viaja de férias, é uma violência psicológica que em nada contribui para a sua educação. Nesse caso, no fundo, a motivação básica dos pais não é educar, mas projetar sua raiva, se auto-enganando que estão fazendo a coisa certa.
Quem castiga esquece, quem é vítima jamais esquece. Uma criança pode receber um castigo e não entender qual é a ligação dele com seu erro. Por isso, sempre temos que explicar a diferença entre o “certo” e o “errado” e criar condições para ela saber antecipar os efeitos de seus atos e poder refleti-los depois. Basil Bernstein demonstrou que as explicações “elaboradas” são mais entendidas pela criança do que as simples ordens e proibições, chamadas por ele de “código restrito”. Ou seja, segundo o sociolingüista, a criança atende melhor um pedido do tipo “por favor, abaixo e som, que estou atendendo ao telefone”, do que apenas a ordem seca: “Desligue isso”.
Educa bem os que usam bem as palavras, atos, acompanhados de olho-no-olho, de silêncio grávido de sentido; acertam na educação dos filhos os pais que sabem – e tem coragem – de escutar. Pais que falam palavras vazias, que fingem ser o ‘amigão’, abdicando-se de sua autoridade de pais, podem estar cometendo uma fraude educativa. Castigos e punições, como também dar prêmios sem merecimento, podem causar efeito negativo na formação do futuro cidadão.
Equilibrar palavras e atos assertivos, sem recorrer ao uso da violência física, é fazer da educação uma arte e nova ética para uma nova geração que poderá ser mais democrática e mais feliz.
Referências
ALAIN [Emile-Auguste Chartier]. Reflexões sobre a educação. [Propos sur l’Education]. [Trad.: Maria Elisa Mascarenhas]. São Paulo: Saraiva, 1978.
AQUINO, J. G. (Org.) Indisciplina na escola: alternativas teóricas e práticas. São Paulo: Summus 1996.
BERNSTEIN. “Basil Bernstein e a psicanálise”.  In: Efeito psi. A influência da psicanálise [org. S. A. Figueira]. Rio: Campus: 1988. Tb: MARCELLESI, J.-B. & GARDIN, B. Introdução à sociolingüística. Lisboa: Ester, 1975, pp. 182-201.
DEL PRIORE, M. “O cotidiano livre da criança livre no Brasil…”. In: História das Crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.
FOUCAULT, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1977.
LIPP, M. Palmada educa”. In: Veja, 01/05/96.
www.aprendiz.com.br [acesso pelo UOL, em set/2004].

* RAYMUNDO DE LIMA é professor do Departamento de Fundamentos da Educação (UEM) e Doutor pela Faculdade de Educação (USP). Publicado na REA, nº 42, novembro de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/042/42lima.htm [1] http://www.aprendiz.com.br/
[2] http://www.aprendiz.com.br/

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