O aniversário
Plínio Marcos
O Zé Mané levava uma vida de lascar. Nem de leve pegava maré mansa. Seu trampo era pesado paca. Das oito da matina às seis da tarde debaixo de sacaria. Uma puxeta de entortar qualquer patuá. E o salário, claro que era o mínimo. Daí, já viu. Com a vida custando os olhos da cara, o Zé Mané mal podia pegar uma gororoba. Pagava oitenta jiripocas por uma vaga num quarto com mais três parceiros para ter onde encostar 0 cadáver. E o que sobrava era pra comer. Mas sobrava tão pouco. Na verdade, o Zé Mané só rangava todos os dias porque o Seu Joaquim Portuga, dono do boteco do pedaço, era um chapa ponta-firme e fiava o sortido pra curriola a perigo. E essa era a sorte selada do Zé Mané. Uma zorra sentida. Apesar de ter nascido com o urubu plantado no seu destino, o Zé Mané, quando fazia aniversário, gostava de se embandeirar, comemorar de se esbaldar e os cambaus. Sempre fora assim. Desde pequeno, considerava o dia do seu aniversário um dia sagrado. Não trabalhava nesse dia, nem nada. Só enchia a caveira de cachaça. E, quando fez trinta anos, não deu outra coisa. O Zé Mané já amanheceu ligado. Logo cedo, deu um alô pros companheiros de quarto:
— Tou fazendo anos hoje.
A turma fez a milonga:
— Boa! Parabéns!
— Quer dizer que hoje tu paga as manguaças?
— Tem que pagar. Afinal, o Zé não faz anos todo dia.
E o Zé Mané não escamou:
— Hoje é comigo mesmo. Nem vou pro batente.
Os parceiros não duvidaram. Mas quiseram saber da situação. O Ditinho Preto, mais chegado ao Zé, tomou a liberdade:
— Tu tá com grana pra garantir, Zé?
Naturalmente, o aniversariante não tinha um tostão no bolso. Mas nem se tocou. Confiando no Seu Joaquim Portuga, tirou de letra:
- Eu sei de mim. E, se mando ver, é porque garanto. Ô meu, tou fazendo trinta anos. Não sou nenhum moleque!
Encabulado, o Ditinho se desculpou:
— Não, eu sei. Mas é que nós, quando se dana a beber, bebe mesmo.
Todos riram. E o Zé Mané fez o apontamento:
— Sete e pouco tamos lá no boteco do Seu Quim.
Cheios de esperança na farra, os companheiros do Zé Mané se arrancaram pro trabalho. 0 aniversariante ficou na cama. No seu grande dia, ele não tinha hora pra acordar. Mas, pro encontro combinado, ele não se atrasou. Às sete em ponto piou no boteco do Seu Quim. Não teve que esperar muito pelos amigos. Eles logo baixaram na parada. E chegaram fazendo zoada. Pique-pique, parabéns pra você, hip-hurra e os cambaus. A patota toda presente ficou por dentro do assunto. Todo mundo abraçou o Zé Mané e ele espumou de alegria. Não maneirou. Convidou todos pra beber. A moçada não fez cerimônia com 0 otário. Se serviram. De saída, Seu Joaquim abriu duas dúzias de cerveja. E teve muito pilantra que ainda pediu pinga pra quebrar o gelo da cerveja. Sem conferir, o Zé Mané autorizava. Quando o dono do boteco vacilava, o loque berrava:
— Hoje é festa, Seu Quim. Bota aí, que não tem chibu. Tou fazendo trinta anos.
Com essas e outras, todo o gango se empapuçou. Já tinha nego cercando frango quando um gaiato resolveu tirar sarro com a fuça do dono do boteco. Sabendo que o homem era bronqueado com anedota de português, o pilantroso atacou na ferida:
— Escuta aqui, Zé Mané. Tu sabe que falaram pra um cutruco que ele tinha que pagar Imposto de Renda na fonte e o labrego acabou morrendo afogado?
A curriola estourou de rir. E conversa puxa conversa. Cada um sacou um esculacho em português. O Seu Joaquim azedou. Como não era homem de comer enrolado e não queria briga, resolveu acabar com a festa. E deu o aviso:
— Bom, já é tarde. Eu vou fechar 0 bar. Não sirvo mais nada, que já tão todos de pé queimado. Seu Zé Mané, o senhor que é o dono da conta, me faz favor de acertar e ir contar piada de português em outro canto. Aqui não quero isso.
Teve estrilo. Quás-quás-quás grosso. Porém, como era mais de meia-noite, o Zé Mané deu uma pá de cal na festa. Olhou no relógio e acalmou os ânimos:
— Acabou a festa. Meu aniversário foi ontem.
A patota se conformou. Já iam se mandando quando o Seu Joaquim deu o arrocho:
— E a conta? Quem paga?
O Zé Mané não balançou pra responder:
— Pendura.
Não prestou. O Seu Joaquim virou bicho. Já estava invocado com as piadas. Com o devo do Zé Mané, então, se picou de raiva. E deu a prensa:
— Não tem papo. Vai pagar já.
Pro Zé, que não tinha dinheiro, a novidade valeu por uma paulada. E deu a volta em tom bravo:
— Pendura, já falei. Sempre pendurou, por que vai fazer onda agora?
Teve início um bate-boca:
— Pendurei os sortidos.
— E eu sempre paguei.
— Mas bebida eu não vendo fiado.
— Agora que tu avisa?
— Tu já devia saber que não vendo bebida fiado pra vagabundo nenhum.
— Vagabundo é a mãe.
Xingar a mãe é sempre início de confusão. 0 português passou a mão num cacete, pulou o balcão e cobriu o Zé Mané de pancada. Ninguém se meteu. O Zé, bebum, mal podia com ele mesmo e apanhou coisa que preste. Ficou estarrado no chão quase morto. E só com muito custo impediram o português de mandar o Zé falar com Deus. O Ditinho Preto e os outros companheiros de quarto guindaram o Zé Mané. E a bagunça acabou aí.
No dia seguinte, Seu Joaquim estava firme no boteco, atendendo a freguesia, quando o Ditinho Preto se apresentou falando macio:
— Seu Joaquim, o Zé Mané tá com vergonha do que aconteceu ontem e pediu pro senhor ir ali na esquina, que ele quer acertar as contas com o senhor.
O português entrou no grupo. Até bochichou:
— O Zé é bom rapaz. Ontem ele estava bebido. Hoje ele acerta e fica tudo por isso mesmo. Vamos lá.
Na esquina, o português encontrou o Zé Mané. Mal viu o loque e manjou qual era o acerto. Quis correr, mas não deu. O Zé Mané meteu uma lapa de faca que não tinha mais tamanho na barriga do Seu Joaquim. O homem ficou embarcado. Mas, antes de morrer, ainda escutou o recado do Zé:
— Assim tu aprende a respeitar um pinta que faz aniversário.
Plínio Marcos de Barros nasceu em Santos (SP) em 29 de setembro de 1935. Filho de família modesta, não gostava de estudar e terminou apenas o curso primário. Foi funileiro, sonhou ser jogador de futebol, serviu na Aeronáutica e chegou a jogar na Portuguesa Santista, mas foram as incursões ao mundo do circo, desde os 16 anos, que definiram seus caminhos. Aos 19 anos, já fazia o palhaço Frajola e pequenos papéis como ator em diversas companhias circenses e de teatro de variedades. Atuou em rádio e também na televisão local em Santos.
Em 1958, conhece a jornalista e escritora modernista Pagu — Patrícia Galvão. Ela e seu marido Geraldo Ferraz, também jornalista e escritor, abriram os horizontes intelectuais dos jovens atores envolvidos no movimento de teatro amador de Santos, inclusive Plínio, apresentando-lhes textos de dramaturgia moderna.
Nesse mesmo ano, impressionado pelo caso verídico de um jovem currado na cadeia, escreve "Barrela", cuja carreira seria premonitória da vida profissional do autor: por sua linguagem ela permaneceria proibida durante 21 anos.
Em 1960, com 25 anos, está em São Paulo, atuando inicialmente como camelô. Logo estaria trabalhando em teatro, como ator, administrador, faz-tudo em grupos como o Arena, a companhia de Cacilda Becker, o teatro de de Nídia Lycia. Desde 1963, produz textos para a TV de Vanguarda, programa da TV Tupi, na qual também atua como técnico. No ano do golpe militar, faz o roteiro do show "Nossa gente, nossa música". Em 1965, consegue encenar "Reportagem de um tempo mau", colagem de textos de vários autores, que fica um dia em cartaz.
Sob o signo da Censura, Plínio Marcos viverá até os anos 80 sem fazer concessões, sendo intensamente produtivo e sempre norteado pela cultura popular. "Dois perdidos numa noite suja" (1966), "Navalha na carne" (1967), "O abajur lilás" (1969) são sistematicamente perseguidos. Ele luta pela expressão com peças musicais como "Balbina de Iansã" (1970) e "Noel Rosa, o poeta da Vila e seus amores" (1977).
Escreve nos jornais “Última Hora”, “Diário da Noite”, “Guaru News”, “Folha de S. Paulo” (cadernos "Folhetim" e "Folha Ilustrada") e “Folha da Tarde” e também na revista “Veja”, além de colaborar com diversas publicações, como “Opinião”, “Pasquim”, “Versus”, “Placar” e outras. Em forma de livro, publica suas peças, os contos de “Histórias das quebradas do mundaréu” (1973) e o romance “Querô, uma reportagem maldita” (1976), depois adaptado para o teatro. O argumento original de “A rainha diaba” (1974) consegue chegar às telas.
Depois do fim da Censura, Plínio volta a impressionar com o romance “Na barra do Catimbó” (1984), peças como “Madame Blavatsky” (1985), textos de teatro infantil, a noveleta e depois peça “O assassinato do anão do caralho grande” (1995). Paralelamente, cresce sua presença como palestrante em várias cidades do país: ele chega a fazer 150 palestras-shows por ano, vestindo negro, com um bastão encimado por uma cruz e a aura mística de leitor de tarô — espécie de nova "personagem de si mesmo", como fora antes a imagem do palhaço.
Traduzido, publicado e encenado em francês, espanhol, inglês e alemão; estudado em teses de sociolingüística, semiologia, psicologia da religião, dramaturgia e filosofia em universidades do Brasil e do exterior; Plínio Marcos recebeu os principais prêmios nacionais em todas as atividades que abraçou em teatro, cinema, televisão e literatura, como ator diretor escritor e dramaturgo.
Desde sua morte aos 64 anos em São Paulo, em 19 de novembro de 1999, as homenagens ao autor e o interesse em torno de sua obra só fizeram crescer, alcançando suas parcerias musicais com alguns dos mais importantes nomes do samba paulista, bem como novas montagens e filmagens de seus textos. Ao mesmo tempo, seu nome foi adotado para batizar prêmios e espaços culturais pelo país afora — inclusive o Teatro Nacional Plínio Marcos, de Brasília.
O texto acima — e as informações sobre o autor — foram extraídas do livro "Histórias das quebradas do mundaréu", Mirian Paglia Editora de Cultura Ltda. - São Paulo, 2004, págs. 131. Sua publicação é uma homenagem ao autor, cujo falecimento ocorreu há 10 anos, em 19/11/1999.
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