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16 de julho de 2010

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*O visionário da tangibilidade*

*Mia Couto*


A morte só existe se há ausência. Para uns, como Saramago, não haverá
nunca
ausência. O escritor semeou-se tanto e por tantos outros que ele apenas
mudou de presença. Não falo da escrita. Mas dos momentos em que ele se
distribuiu, pessoa entre pessoas. Em mim, essa permanência faz-se de
indeléveis momentos. Relembro aqui alguns desses episódios:


*Primeiro episódio*

Maputo, finais de Novembro de 2000

José Saramago vem a Maputo lançar A Caverna. Uma semana antes da sua
chegada, o jornalista Carlos Cardoso tinha sido assassinado. Para
Saramago,
a razão da sua viagem a Maputo já não é ele ou a sua obra. Horas depois de
ter aterrado, a sua agenda é totalmente alterada. Sentado na varanda do
seu
hotel, José dá instruções sobre o que pretende. Horas depois visita a
redacção do Metical, o jornal de que era director Carlos Cardoso. "Acima
de
tudo não podemos deixar que nos convençam que isto que aconteceu é
episódico
e acidental, como se houvesse um grupo descontrolado que, por uma qualquer
razão, resolvesse cometer um crime", disse Saramago na ocasião.
Depois, segue com um batalhão de jornalistas para o local onde Cardoso
tinha
sido abatido a tiro. Ali mesmo fala para a imprensa, exalta a coragem e a
lucidez como armas para preservarmos a humanidade. Visita a viúva de
Cardoso, dá entrevistas, fala com escritores e artistas.
No dia seguinte, pede-me a mim para organizar encontros com membros do
governo. Quer pressionar as autoridades para que encontrem os autores
materiais e morais de ambos os crimes. Organizo um encontro com o
primeiro-ministro de quem eu era amigo. Confesso-lhe os meus receios. O
discurso de um estrangeiro, com exigências sobre a celeridade da justiça,
não agradaria a dirigentes orgulhosos na recente conquista da
Independência.
Confirmando os meus receios, na audiência, José Saramago não usa de panos
quentes. As suas palavras são ásperas, certeiras, sem diplomacia. Pascoal
Mocumbi, o primeiro-ministro, é um homem alto, tão alto como Saramago.
Enfrenta-o, olhos nos olhos. Após um momento de silêncio, Mocumbi
confessa:
"Eu já o conhecia, já gostava de si. Agora gosto mais ainda." Começa então
uma conversa franca que dissolve distâncias. Saramago e Mocumbi trocam
confidências, como velhos amigos. No final, está acertado um outro momento
para continuarem a amena cavaqueira: em Lanzarote, em casa de José e
Pilar.


*Segundo episódio*

Cheias em Moçambique, 2000

As inundações de 2000 foram as piores nos últimos cem anos. Impotente,
perante o drama que vivíamos, redigi um apelo para que as vítimas das
cheias
recebessem apoio internacional. Saramago respondeu-me no mesmo dia
perguntando ao telefone, no seu habitual tom seco:
- Diz-me apenas o que tenho que fazer.
No instante seguinte, tinha transferido 25 mil dólares para uma conta que
passaria a ser auditada por uma agência financeira internacional. Outros
escritores lhe seguiram o exemplo. No final, havia dinheiro para erguer um
centro de saúde em Chivonguene, nas margens do rio Limpopo.
Já em Maputo, meses depois, Saramago foi recebido por Helder Muteia, o
então
ministro da Agricultura. O governante pretendia expressar a Saramago a
gratidão dos moçambicanos. Muteia é poeta. Organizou o encontro com um
carinho que superava as obrigações protocolares. Escapou-lhe, por isso, a
secura do escritor português durante todo o encontro. Ao lado de Saramago
eu
adivinhei-lhe a pressa: queria fugir aos agradecimentos. Para ele havia um
dever de solidariedade que se explicaria melhor junto dos camponeses que
beneficiaram do seu apoio. Já no final, em plenas despedidas, Saramago
perguntou: "E que nome deram ao centro de saúde?" Imitando o tom seco do
visitante, o ministro respondeu, quase displicente: "Chama-se Levantado do
Chão." Saramago parou, fulminado pela emoção. Gaguejou, baralhando letras
e
palavras. Por fim, confessa, em suspiro: "Caramba, homem, você
comoveu-me!"


*Terceiro episódio*

Universidade de Évora, 1999

O abraço estava mal distribuído. Ele abraçou-me. Eu fui abraçado. A razão
dessa troca desigual não era apenas de ordem física. Eu estava preso pela
timidez, vivendo um momento inusual, num território estranho. A pergunta
de
Zeferino Coelho, no dia anterior, ainda ecoava confusamente dentro de mim:
- Você importa-se que José Saramago, depois da entrega do seu prémio, faça
um debate público consigo?
O editor da Caminho conhecia antecipadamente a minha resposta: ter
Saramago
na cerimónia de entrega de um prémio era a impossível cereja por cima de
um
improvável bolo. Embalsamado num fato escuro, fui subindo a escadaria do
edifício da universidade. E lá estava ele, no último degrau, com seu porte
nobre, abraçando-me logo à chegada como se fosse ele o patrono do prémio.
Para mim, aquele abraço era uma recompensa maior.
O programa era breve e, num instante, se iniciou a anunciada conversa
entre
mim e ele. O anfiteatro estava cheio, no pódio estava o Presidente da
República de Portugal. A um certo momento, em tom paternal mas ríspido,
Saramago admoestou-me: eu que deixasse essa "coisa" da biologia e me
dedicasse apenas à escrita. Lembro-me do seu tom, peremptório: "Já te
disse,
a escrita pede tudo, não aceita partilhas."
Mas eu sabia que, também para ele, essa entrega à literatura não o ocupava
com exclusividade. Saramago foi um cidadão do mundo, entregue a causas e
debates, desdobrando-se em viagens e semeando presenças. Recordo ver uma
fotografia sua, já doente e antevendo o fim, acarinhando Aminatou Haidar,
activista pela independência do Sara Ocidental. Em greve de fome, Aminatou
está frágil, quase desfalecida. Não menos frágil está José Saramago. Mas
as
mãos de José e de Aminatou amparando-se mutuamente geram a força de um
infinito abraço. O visionário da tangibilidade

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