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14 de maio de 2010

sobre o novo PNE

Como deve ser um novo Plano Nacional de Educação?
 
Por Otaviano Helene e Lighia B. Horodynski-Matsushigue
 
A história como guia
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, sancionada em 20 de dezembro de 1996, exigia que o poder executivo encaminhasse ao Congresso Nacional, em um prazo de um ano, um projeto de Plano Nacional de Educação (PNE). Esse prazo se esgotou sem que o governo federal tivesse cumprido com sua obrigação legal.
 
Tendo em vista a exigência da LDB e a história de lutas da sociedade brasileira em defesa da educação pública, muitas entidades da sociedade civil, organizadas por meio do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e de dois Congressos Nacionais de Educação, elaboraram um PNE e prepararam-se para participar ativamente das discussões que ocorreriam em âmbito nacional. Esse PNE da sociedade brasileira foi apresentado à Câmara dos Deputados no início de 1998. O projeto do executivo foi apresentado um dia depois.[1] Assim, o Congresso Nacional passou a ter em mãos dois projetos de PNE.
 
Os dois projetos foram debatidos pelo Congresso que acabou por aprovar uma versão que continha vários itens extraídos da proposta apresentada pelas entidades da sociedade brasileira, em especial a previsão de recursos financeiros, coisa que inexistia na versão do poder executivo. Embora os cálculos apresentados pelo PNE da sociedade brasileira estimassem em 10% do PIB os recursos necessários para viabilizar uma real recuperação da educação pública nacional e, em conseqüência, a possibilidade de que seriam cumpridas as metas estabelecidas, o Congresso nacional aprovou um valor menor, 7% do PIB[2]. Apesar desse rebaixamento, a definição dos recursos necessários, tendo como base de cálculo o PIB nacional, ou seja, uma medida da efetiva capacidade de investimento de cada nação, foi considerada uma vitória, ainda que parcial. Além disso, o valor aprovado continua sendo cerca de duas vezes superior aos valores historicamente investidos em educação pública no país.
 
Os 10% do PIB destinados à educação eram uma espécie de sonho para os educadores e todos aqueles interessados na promoção do desenvolvimento social, cultural e econômico do país: em uma década teríamos mudado completamente o caótico, injusto e ineficiente sistema educacional brasileiro. O valor aprovado pelo Congresso Nacional, se não era um sonho, pelo menos nos livraria da crônica falta de recursos e deixava ainda alguma margem para perspectivas otimistas.
 
Entretanto e infelizmente, mesmo esse percentual reduzido foi vetado pelo então presidente Fernando Henrique. Assim, o PNE começou mal: havia metas a serem cumpridas, mas não havia a previsão de recursos para tal. De um plano, transformou-se em uma ilusão: como satisfazer as metas sem os necessários recursos?
 
Assim que o PNE foi promulgado, iniciou-se uma campanha pela derrubada do veto aos recursos financeiros. Essa campanha fortaleceu‑se quando o programa apresentado pelo presidente Lula, em sua primeira campanha presidencial vitoriosa, previa o estudo da derrubada daquele veto. Embora a redação fosse essa – um estudo da derrubada do veto –, muitos otimistas a liam como um compromisso explícito com a derrubada do veto. Mas isso era ilusão: não houve iniciativas sérias nem do poder executivo, nem do parlamento, para derrubar o veto, que foi mantido.
 
Assim, inexistindo qualquer outra previsão de recursos para viabilizar o desenvolvimento educacional, qualquer ilusão desaparecera: se o sonho dos 10% do PIB destinados à educação desapareceu quando o Congresso Nacional reduziu o valor para 7%, o veto do governo FHC nos trouxe de volta o pesadelo de sempre.
 
Metas não atingidas
O PNE aprovado e ainda em vigor contém várias metas que deveriam ser atingidas em 10 anos, a se completarem no início do próximo ano. Entre elas estava o crescimento significativo da educação infantil (crianças de até 6 anos de idade), redução das taxas de repetência no ensino básico (fundamental e médio), a efetiva universalização do ensino fundamental (ou seja, a totalidade das crianças concluindo esse nível de ensino), a garantia de que a totalidade dos jovens pelo menos iniciasse o ensino médio e, quanto ao ensino superior, de que pelo menos 40% dos estudantes estivessem matriculados em instituições públicas. Havia metas também relativas ao combate do analfabetismo (que deveria ser erradicado até 2011), à formação de professores, à infra-estrutura material das escolas, entre muitas outras. É claro que para essas metas serem atingidas seriam necessários recursos; com o veto e sem nenhuma outra previsão de recursos, as metas, evidentemente, não seriam atingidas.
 
De fato, não foram. Ou, até pior: muitos indicadores do desempenho educacional na década de vigência do PNE simplesmente pioraram[3]. As taxas de conclusão dos ensinos fundamental e médio, que vinham crescendo, ainda que aos trancos e barrancos, a uma razão de cerca de 5% ao ano desde o início do século passado, estagnaram por volta do ano 2000, iniciando aí uma trajetória descendente.[4] Assim, não só as metas do PNE não foram cumpridas como nos distanciamos ainda mais de muitas delas. A década de 2000 marcou um dos dois piores períodos de retração ou estagnação da educação brasileira dos últimos 100 anos.[5]
 
Por que isso?
Por que isso aconteceu? Primeira razão: pela simples falta de recursos. Não havendo recursos é absolutamente impossível atacar o problema educacional. Pode-se aumentar o número de matrículas sem que sejam fornecidas às escolas e aos educadores as necessárias condições de atendimento (laboratórios, bibliotecas, aulas de reforço, cargas de trabalho toleráveis, salários adequados etc), que parece ter sido o que ocorreu ao longo da década de 1990, período no qual houve aumento dos indicadores quantitativos da educação. Mas esse aumento das matrículas, sem o necessário aparelhamento do sistema para atender adequadamente a quantidades maiores de estudantes, leva a uma piora dos indicadores qualitativos, o que também ocorreu ao longo da década de 1990, ilustrando o óbvio: apenas registrar matrículas não educa.
 
E mesmo essas práticas de apenas registrar matrículas têm um limite: o ponto em que não ir à escola é melhor do que ir. Quando esse limite é atingido, os indicadores quantitativos estagnam-se. E parece que isso realmente ocorreu por volta do ano 2000, quando as taxas de conclusão dos ensinos fundamental e médio começaram a se reduzir.
 
Segunda razão: não houve, realmente, um compromisso nacional com a educação escolar. Nem o executivo federal, nem o Congresso tentaram derrubar o veto aos recursos. Os outros entes governamentais (estados e municípios) não levaram a sério o PNE e nada fizeram para que fosse cumprido.
 
Se havia metas, o Congresso e o governo federal deveriam regulamentá‑las por legislações ou normas complementares. Não o fizeram. Se havia metas finais, deveríamos cuidar das metas parciais que, se não cumpridas, comprometeriam o cumprimento das metas finais. Nada se fez. Se havia metas nacionais a serem cumpridas, elas deveriam ser cumpridas em cada estado e município, os principais responsáveis pelo fornecimento da educação básica. Mas não foram. Governadores, prefeitos e secretários de educação simplesmente desconsideraram suas responsabilidades para com as metas e ignoraram a existência do PNE. Nenhum estado, nenhum município cumpriu nenhuma das metas que estavam sob sua responsabilidade.
 
Sem definir recursos e as obrigações financeiras e educacionais dos vários entes federativos, sem definir como as pessoas farão para garantir os direitos à educação que o PNE criou e a quem recorrer caso eles não sejam satisfeitos, sem regulamentar como as várias metas serão cumpridas e como, e quem, fiscalizará esse cumprimento e, ainda, prever punições pelo não cumprimento, o PNE é alguma coisa entre a ilusão e a enganação.
 
O que fazer?
A vigência do atual PNE se encerra em poucos meses e o Congresso Nacional deverá elaborar um novo. A pergunta adequada neste momento é: como deve ser e o que deve conter o próximo PNE para que não seja, como o atual, uma mera fantasia?
 
As respostas para essas questões podem ser encontradas nas origens da falência do atual PNE. Em primeiro lugar, deverá haver previsões de recursos suficientes para cumprir as metas estabelecidas. É ilusão (ou enganação) fazer uma lista de tarefas a serem cumpridas sem indicar claramente de onde virão os meios necessários para cumpri-las. Sabe-se, com ótima precisão, qual o investimento econômico necessário para se manter uma criança ou jovem em uma escola com nível de qualidade aceitável. Sabe-se quais os recursos necessários para uma escola ter condições de atender adequadamente seus estudantes e quanto é necessário para remunerar de forma adequada os profissionais da educação. Assim, o PNE deve tanto definir o percentual do PIB a ser destinado à educação pública, algo em torno de 10%, como qual será a participação de cada ente federativo (união, estados e municípios) na composição dos recursos.
 
Um novo PNE deve, também, estabelecer quais são as responsabilidades da União, dos estados e dos municípios, pois é inútil definir metas sem estabelecer quem deve cumpri‑las. Além disso, devemos atribuir responsabilidades e definir as conseqüências e punições para aqueles órgãos ou entes que não cumprirem sua parte. Talvez, neste aspecto, devamos também responsabilizar, além dos poderes executivos e legislativos, os órgãos do judiciário e de defesa da ordem jurídica, que passaram os últimos 10 anos observando uma lei nacional não ser cumprida sem nada fazerem.Deve-se, ainda, definir quais são as tarefas e obrigações dos órgãos de assessoria e apoio do ministério e das secretarias estaduais e municipais de educação, aí incluídos os Conselhos, nacional e estaduais, de Educação.
 
O Congresso, as Câmaras municipais e as Assembléias estaduais também deverão estabelecer regras complementares que viabilizem o cumprimento das metas a serem atingidas.
 
Conclusão
Não há um único país que tenha superado o atraso e as barreiras do subdesenvolvimento sem ter escolarizado sua população. Caso aconteça com um novo PNE o mesmo que ocorreu com o atual, o desenvolvimento (ou não) da educação brasileira continuará ruim: a educação será apenas um reflexo e subproduto do restante da realidade nacional e não um instrumento de promoção do desenvolvimento e um fator a se refletir positivamente na nossa dura realidade.
 
Tentar vincular o desempenho educacional futuro do país a eventuais recursos do pré-sal, usar frases de efeito, atribuir vagamente responsabilidades à “sociedade civil e empresários”[6], ou preencher papel com belas palavras será totalmente inútil e servirá para iludir por mais uma década a população brasileira. Serve, também, é claro, para manter nossa posição de atraso cultural, econômico e social.
 
Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, foi presidente da Associação dos Docentes da USP (Adusp) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep).
Lighia B. Horodynski-Matsushigue é professora aposentada do Instituto de Física da USP e vice-presidente da regional São Paulo do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN)
 

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