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4 de setembro de 2011

UMA REFLEXÃO SOBRE SALA DE AULA

Essa coisa que se faz em sala de aula: notas sobre o mal-estar na prática docente

Posted: 03/09/2011 by Revista Espaço Acadêmico in colaborador(a), educação
por JARBAS DAMETTO*
Recentemente, em um painel acerca do mal-estar docente realizado na Segunda Semana Acadêmica de Pedagogia da Universidade de Passo Fundo, campi Palmeira das Missões, no interior do Rio Grande do Sul, referi-me à prática pedagógica, sinceramente sem dar-me conta, como “essa coisa que vocês fazem em sala de aula”. Tal lapso foi a mim indicado posteriormente, aos risos, por um colega de mesa, professor, que achou um tanto inconveniente, ou ao menos estranha, a minha expressão, já que se tratava de uma platéia de graduandos em pedagogia, licenciaturas, e professores em atuação. Numa fala ou escrita meticulosa, certamente não usaria estes termos, mas como se sabe, o discurso muitas vezes “ganha vida própria”, e diz muito mais do que queríamos no momento dizer, talvez, diga “a verdade”.
Seguindo uma velha receita psicanalítica, resolvi explorar o lapso, escarafunchar nesta incômoda frase, a fim de pôr à luz o que nela há de possivelmente verdadeiro, o que ali precisava ser dito. Pois bem, que seria uma “coisa”? Em si, a palavra não tem nada de mal, mas é comum que a utilizemos para indicar algo que não está claro à nossa percepção, que não tem nome, que tem formas estranhas. Posso intuir que foi este o sentido que fez rir o outro painelista. Incidentalmente, emergiu um dizer chistoso, um gracejo involuntário, que em suas entrelinhas afirma: a prática pedagógica é amorfa, carente de identidade, irreconhecível senão por seu contexto, reconhecemo-la por se dar na Escola, na sala de aula.
Tendo em vista que a temática sobre a qual versava a apresentação era o sofrimento físico e psíquico que emana da prática cotidiana do professor, percebe-se que a tal “coisa” pode ser o ponto crucial do debate. Como se faz, e o que se faz em sala de aula que provoca sofrimento e, por vezes, adoecimento? Seriam esses fenômenos, problemas meramente individuais, ou há algo na prática em si, se é que podemos assim nos referir, que provoca o mal-estar? Busquemos, pois, respostas em outras fontes, para além de um inconsciente falastrão.
S. Freud (1856-1939), um dos maiores nomes da psicologia moderna, certo momento, afirmou que haviam três trabalhos impossíveis de serem realizados: psicanalisar, governar e educar. Assim o afirmou, dentre outros motivos[1], devido à resistência engendrada pelos indivíduos sobre os quais, ou com os quais, se dão essas ações. No caso específico da educação, pode-se dizer que as pessoas não se educam de imediato, em uma única experiência, ou sem lutar algum tempo contra as forças que querem as educar e guiar seus destinos. De tal modo, fica clara a parcialidade, a incompletude de toda educação, jamais será obtido o resultado completo que se esperava, talvez por isso haja uma média a ser alcançada pelo aluno, e não o conhecimento de pleno dos temas tratados.
Nada disso é novidade para a prática docente, mas, tal qual o governante e o psicanalista, caberá ao professor suportar e manejar a ferida narcísica que isso acarreta: “não atingi meu objetivo, meu trabalho, ao menos em partes, fracassou”, e assim sempre será. Educar é um trabalho de Sísifo, que luta constantemente com uma força maior, que não é a “incapacidade de aprender”, mas a própria resistência ao aprendizado. Resistência esta, que se potencializa frente a disparidades entre a vida e os interesses do educando, e as propostas pedagógica da Escola. Tendo em vista a predeterminação do conteúdo das disciplinas em nível macro-geográfico, este problema ganha proporções alarmantes, em grande medida, pode-se afirmar que há mais resistência que interesse em relação à educação formal. Como aponta Sanches (2002),
[...] o aprender não é diferente de outras atividades humanas: quando algo vem de encontro a uma necessidade ou a um desejo, torna-se prazeroso. Caso contrário, pode ser vivido como uma invasão, como algo que não me pertence e do qual não me aproprio; quando o ato de aprender torna-se um gesto de sujeição, que faço porque tenho que me submeter a alguém, há pouco espaço para o prazer. (p.17).
Este confronto entre o interesse do aluno e da Escola, que é mediado pelo professor, portador de seus próprios desejos e objetivos, que podem divergir dos outros dois, faz da prática de ensino um campo aberto ao surgimento do mal-estar, que pode se materializar em afrontas diretas entre os envolvidos, ou em um sofrimento velado, onde os não-ditos se traduzem em sintomas. Afirma-se que, como em qualquer área profissional, na docência, a qualificação do trabalhador supostamente contribuiria a uma melhor execução desta conflituosa atividade, mas, sabe-se que qualificação é esta, que habilidades são necessárias? E mais, o que seria uma docência bem executada? Sabe o professor por onde ir e aonde chegar?
Vamos à busca de algumas perspectivas para essas questões, sendo uma possível fonte, o memorável pedagogo brasileiro, Paulo Freire, em seu último, e um dos mais lidos livros (talvez por ser um dos menores) Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a prática educativa. Logo ao abrir o referido livro, chama a atenção as vinte sete repetições de “Ensinar exige”, que compõe os subtítulos dos capítulos da obra, listados no índice. Tal relação de exigências propõe a docência como algo complexo, que necessita de uma sagaz leitura da realidade e de muita preparação, o que de fato é verídico, e bom seria se todo educador observasse essas premências em sua prática diária e em sua formação. No entanto, alguns dos critérios apontados fazem pensar se, efetivamente, é possível ensinar adequadamente. Vejamos alguns desses pontos críticos da observação de Freire (2002).
Boa parte das considerações do autor nos remetem a habilidades que podem ser adquiridas através da preparação, de leituras, de reflexões, de debates, etc.. No entanto, outras questões propõem qualidades que fogem ao domínio da formação acadêmica e profissional, entrando em elementos íntimos do sujeito, senão constitutivos de sua personalidade. Como exemplos, podemos considerar: “Ensinar exige alegria e esperança” (…) “Ensinar exige curiosidade” (…) “Ensinar exige bom senso”, dentre outras observações (FREIRE, 2002. p.8).
Embora Freire (2002) argumente muito bem cada um dos pontos, eles não deixam de transparecer algo de vocacional, que escapa a possibilidade de qualquer um que queira assim agir, ou essas qualidades possuir. Quanto ao bom senso, por exemplo, vale lembrar o apontamento cartesiano, certamente ainda válido, que afirma que “O bom senso é, das coisas do mundo, a mais bem dividida, pois cada qual julga estar tão bem dotado dele, que mesmo os mais difíceis de contentar-se em outras coisas não costumam desejar tê-lo mais do que já tem.” (DESCARTES, 2000, p.21). Conseguiria alguém, pelo bem da Educação, reconhecer a precariedade de seu bom senso, e teria o interesse em ampliar os seus limites? Se sim, através de que método o faria? Serviria o “método científico” a uma prática tão complexa? Ou então, como alguém faria para se tornar “alegre e curioso” a fim de desempenhar com melhor desenvoltura seu papel de educador? Tendo em vista tais questões, é provável que tenhamos que nos contentar com uma educação “pela metade”.
Os apontamentos de Freire (2002), prenhes de esperança e indignação, apontam a Educação como um exercício da utopia. Prática utópica porque luta contra resistências, principalmente a dos supostamente beneficiados pelo processo, embebidos que estão em limitações introjetadas ideologicamente; porque é uma luta contra adversidades políticas e econômicas; porque é uma caminhada contínua em busca de um ideal que extrapola os limites da boa atuação profissional e do adequado aprendizado dos alunos. Trata-se de uma prática de libertação que se faz em conjunto, e como tal, extremamente árdua e conflituosa.
A educação formal se mostra utópica por esse e vários outros motivos, porém, não podemos assim considerá-la se nos apegarmos ao sentido estrito do termo, utopia como não-lugar, pois o lugar é o pouco que resta como referencial, como algo que dá identidade a esta ambígua prática revivida diariamente. Tudo o que se pode dizer com certeza é que se trata de, via de regra, “uma coisa que se faz em sala de aula”, cujas formas e métodos não escapam a intersubjetividade e aos embates culturais presentes neste espaço.
Um passo para o adequado enfrentamento deste mal-estar sentido na Escola poderia ser assumi-lo enquanto inerente a esta experiência educacional institucionalizada, e não como um subproduto ou uma anomalia desta. Da mesma forma que, como aponta Birman (2000) coube admitir que o mal-estar permeia a atualidade e pertence ao rol dos males incuráveis da civilização, os quais podem, na melhor das hipóteses, serem administrados. O preparo para esta diversidade amorfa e belicosa reservada ao trabalho docente passa, não pela aquisição de técnicas didáticas, embora sejam elas necessárias, mas pelo desenvolvimento de uma estrutura sólida (não rígida), capaz de sobreviver aos impactos das frustrações e de gerir micro-politicamente as resistências emergentes no cotidiano. Os psicanalistas costumam chamar um preparo semelhante a este como formação, um processo para praticamente a vida inteira, que inclui estudo, supervisão e análise. No círculo docente, tem se falado muito em formação continuada – o adjetivo nos dá mostras de que um dia se pensou que a formação docente poderia estar, em algum momento, definitivamente concluída, mas a realidade insiste em provar o contrário.
Referências bibliográficas:
BIRMAN, J. Mal-estar na atualidade: A psicanálise e as novas formas de subjetivação. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
__________. Subjetividade, contemporaneidade e educação, In: CANDAU, V. (Org.) Cultura, linguagem e subjetividade no ensinar e aprender. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. p.11-28.
DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Martin Claret, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários a prática educativa. 21.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.
SANCHES, Renate M. Psicanálise e Educação: questões do cotidiano. São Paulo: Escuta, 2002.

* JARBAS DAMETTO é psicólogo e mestre em educação pela Universidade de Passo Fundo, atua como psicólogo clínico na rede pública e privada e como docente na Faculdade Anglicana de Tapejara. Realiza estudos sobre Educação e Psicologia tendo como perspectiva teórica as obras de Michel Foucault e autores psicanalíticos. Publicado na REA, nº 82, março de 2008, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/082/82dametto.htm
[1] Sobre as demais leituras possíveis acerca desta “impossibilidade” observada por Freud, ver BIRMAN, 2002.
Retirado do blog REVISTA ESPAÇO ACADÊMICO

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