LUGAR DA LEITURA
Ler é bom?
Bom? Ler é bom demais. Ler é ótimo. Ler é mais do que necessário. Enriquecedor. Imprescindível. Mas a verdade é que talvez você só leia “de vez em quando”. Ou até leia com certa freqüência, mas gostaria de ler melhor, ou de ler mais, num país em que se costuma dizer que as pessoas lêem muito pouco, falam mal e escrevem pior ainda.
Diante do desinteresse mais ou menos generalizado pelo livro (que não é só um problema brasileiro, é mundial), cuja raiz está na educação familiar e escolar, nós, professores, em desespero de causa, costumamos cometer um erro fatal. Obrigamos os jovens a lerem Iaiá Garcia de Machado, Iracema de Alencar, Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, O Cortiço de Aluísio, ou um outro romance-cortiço qualquer, ou um romance açucarado ou, pior ainda, o último best-seller, com os seus conhecidos ingredientes de muito sangue, sexo e agora esoterismo. Democraticamente, impomos a todos que leiam o mesmo livro e, na prova, respondam (quase) da mesma forma.
Resultado: fazemos justamente o contrário do que queríamos. Tornamos o ato de ler um dever desagradável, irritante, e convertemos o livro num símbolo do constrangimento, da cobrança e do fracasso. Geramos, assim, pessoas complexadas, novos analfabetos funcionais que, na frase do poeta Mario Quintana, “são os que aprenderam a ler e não lêem”, e completo: são os que aprenderam a escrever e não escrevem.
Trabalhamos com a maior boa vontade, sem dúvida, pois ansiamos fazer entender aos jovens que o hábito de ler é meio caminho andado para uma pessoa ser intelectual e socialmente saudável e, em todas as áreas, um profissional completo. O fato, no entanto, é que muitos dos que alcançam e concluem o curso superior continuam alheios ou, o que é pior, avessos aos livros. Para o resto da vida, só lerão “de vez em quando”: manuais técnicos, o caderno de esportes do jornal, a revista mensal ilustrada, qualquer coisa em que o interesse imediato pelo assunto supere a barreira de uma incapacidade quase física para ler textos exigentes e substanciais.
Ou será que nós, professores e pais, não os motivamos realmente a ler?
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Forçar ou proibir?
Não tem sentido forçar alguém a fazer algo, mesmo que seja algo maravilhoso e fundamental para a sua felicidade. O que posso e devo fazer é expor à pessoa os motivos racionais em que se baseiam meus conselhos, motivos que, se quiser, ela transformará em idéias claras, idéias que, graças a uma vontade firme, se traduzirão em ações responsáveis, e essas, finalmente, num hábito arraigado.
Por que vale a pena adquirir o hábito de ler? Uma primeira resposta é que os livros fornecem bastante matéria intelectual e emocional. As idéias e os sentimentos não caem do céu nem brotam no jardim. Ler é alimentar-se espiritualmente, é adquirir aquela inquietação interior — bem como uma série de convicções —, a indescritível riqueza íntima de quem está atento à vida, de quem carrega consigo a vontade de conhecer e amar infinitamente.
Mas desde agora faço uma ressalva. Se os livros são importantíssimos para a aquisição de uma cultura humanista e de um “estofo”, não são os únicos meios nem devem ser encarados como A Solução Exclusiva. É preciso, entre outras coisas, que convivamos com pessoas que saibam conversar. “Papear” sobre os mil e um temas da vida com colegas e amigos razoavelmente cultos e que utilizem bem da linguagem exercita-nos o raciocínio e potencia a nossa capacidade de entender e, como conseqüência da reciprocidade intrínseca numa conversa, de fazer-nos entender.
O cinema é outra possibilidade de crescimento cultural. Filmes como “O feitiço do tempo” (Groundhog Day), que reflete, à Frank Capra, sobre o valor de 24 horas bem vividas; “O jardim secreto” da cineasta polonesa Agnieszka Holland, delicadíssima fábula sobre o mundo infantil; “A Bela e a Fera” da Walt Disney, um desenho animado impecável; “A festa de Babette”, filme franco-dinamarquês sobre a felicidade humana; ou como “Tempos de glória” (Glory), que nos fala da nobreza e do compromisso a um ideal — são todos obras-primas que nos aprimoram enquanto seres humanos.
Contudo, as redações do vestibular e os textos, documentos e cartas nas relações sociais e de trabalho mostram-nos à saciedade que há muito o que consertar, e por todos os lados. Multidões de estudantes e profissionais sentem-se perplexos na hora de redigir, ou de falar em público, sobre um assunto acessível. E sofrem bastante. Tenho acompanhado de perto este sofrimento, que se torna crônico quando nós, professores (tantas vezes igualmente submetidos a injustiças que nos desanimam), reclamamos da sociedade consumista, criticamos a subcultura reinante, ameaçamos os alunos preguiçosos, anatematizamos as telenovelas (no que, aliás, estamos cobertos de razão).
Bom, digamos isso ou aquilo, a realidade é que não temos a fórmula mágica de como sair desse beco sem saída, do qual só os próprios interessados poderão escapar, se tomarem a decisão séria de investir no auto-aperfeiçoamento intelectual, na auto-educação, recorrendo, sobretudo (e agora volto a enfatizar a nossa questão), a uma leitura constante e bem assimilada.
Às vezes penso que o melhor mesmo seria proibir expressamente que as pessoas lessem, em primeiro lugar os jovens, o que levaria todos nós a ler por conta própria. Porque parece que o proibido sempre atraiu o ser humano, e, desde o começo do mundo, foi o estopim de muitas curiosidades. Contou um humorista que Deus, na sua primeira conversa com Adão, disse-lhe: “Meu filho, você pode comer os frutos de todas as árvores do Éden, só de uma delas é que é proibido”. E imediatamente Adão se agitou: “Proibido? Proibido? Onde está, onde?”
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Abrindo um parêntese...
De nada adiantará a qualquer um de nós, escrevamos/falemos mal ou menos mal, sentir-se culpado por não ler tanto ou tão bem quanto gostaria e, como decorrência quase fatal, por não escrever e falar com mais fluidez, com mais criatividade, com mais segurança. Além de compreendermos os motivos razoáveis que justifiquem um esforço por se tornar um bom leitor e uma pessoa que se comunique agradavelmente, é necessário que se faça uma descoberta íntima, intransferível. A descoberta do prazer da leitura.
Se existe gente que gasta mais dinheiro com refrigerantes do que com livros, é pelo simples fato de que gosta de refrigerante, de que sente prazer em bebê-lo. As crianças que, desde os primeiros anos de vida, se habituam a manusear livros infantis coloridos e ouvem histórias inventadas pelos pais e avós; que, mais tarde, lêem aventuras cujos protagonistas são crianças da sua mesma idade; que, com o tempo, conhecem autores estimulantes como Michael Ende, Monteiro Lobato, C.S. Lewis, Hans Christian Andersen, Mark Twain, Júlio Verne, e tantos outros; essas pessoas sentem um imenso prazer na leitura, porque experimentaram esse prazer de modo adequado às etapas da sua vida, e em doses certas, até o ponto de tomarem consciência de que, juntamente com o prazer que oferece, a leitura transmite raciocínios, faz germinar idéias, ensina silenciosamente a escrever e a falar com clareza, estimula a imaginação, amadurece a sensibilidade etc.
Se por algum motivo não tivemos a sorte de percorrer essa suave ladeira, e subitamente fomos obrigados a ler autores que nada nos diziam, criando em nós uma verdadeira alergia aos livros, a possível solução, para já, é tentar descobrir, sem medo de decepcionar-se, uma leitura que de verdade nos faça sentir prazer, um envolvente prazer espiritual.
Prazer que se produz em nós quando deparamos com um texto que tem o sabor da vida. A propósito, lembro-me sempre do conselho de Ítalo Calvino que insistia na necessidade de procurarmos os nossos “clássicos pessoais”, livros que lemos e relemos, não por obrigação, mas por amor e por prazer.
Essa descoberta personalíssima da leitura nunca será tardia. Seja quando for, o importante é ter a coragem de investir tempo, mesmo que apenas uns singelos 10 minutos diários, para desfrutar de um livro que realmente apaixone.
Há, sem dúvida, casos de pessoas cujo temperamento ativo e “atirado” faz rejeitar a leitura como uma lamentável perda de tempo. São pessoas que preferem viver uma aventura real a ler uma inventada, e, adeptos convictos da linha praticista, aprendem vendo ou ouvindo mais do que lendo. A sua decorrente dificuldade para escrever é muitas vezes compensada pela “ginga”, pela simpatia ou por uma habilidade puramente técnica. Enfim, embora isso não justifique o desprezo aos livros, felizmente nem tudo no mundo dependerá de conhecermos Machado de Assis ou La Rochefoucauld.
Fechemos o parêntese.
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A leitura com dedicação
A leitura bem feita deflagra um complexo exercício interior de difícil descrição. Ao ler, ponho em ação os sentimentos, a vontade, a memória, a imaginação, a inteligência. Nasce dentro de nós uma agitação bem organizada, como a dos formigueiros e das colméias. As palavras são verdadeiras embaixatrizes da realidade. Fisicamente distante de um vulcão, trago-o para perto, para dentro de mim quando leio a palavra “vulcão”. Aparentemente absorto do mundo e distante de todos, o leitor, na verdade, está fugindo em direção ao mundo, está se unindo a todos.
A fome de conhecer e de amar através da leitura manifesta-se claramente quando recorremos ao dicionário, o “pai dos inteligentes”, a fim de descobrir ou ampliar a definição de palavras desconhecidas e, portanto, abraçar novas facetas da realidade e da humanidade, abraçá-las e deixar que elas nos abracem.
Mas para abraçar o máximo de realidades veiculadas pelas palavras é necessário um esforço adicional: concentrar-se.
Uma leitura dispersiva é pura perda de tempo. Concentrar-se pressupõe abrir o livro com a disposição de dedicar-se à leitura.
Dizem, em tom de brincadeira, que D. Pedro II lia muito bem porque o fazia com os cinco sentidos. Com a vista, naturalmente; com o tato, segurando o livro; com a audição, ouvindo o barulho das páginas ao serem folheadas; com o olfato, sentindo o cheiro da tinta impressa; e com o paladar, quando molhava o dedo indicador na língua para virar as páginas com mais facilidade...
O cúmulo da leitura dispersiva é fazer como aquele que vai ler para pegar no sono. As regras dessa arte são muito simples: “Meta-se na cama numa posição confortável, certifique-se de que a luz é insuficiente, de modo a causar ligeira fadiga ocular, escolha um livro que seja tremendamente difícil ou tremendamente maçante — de qualquer forma, um que realmente pouco lhe importe ler ou não — e estará dormindo em poucos minutos. Os peritos em repousar com um livro nas mãos não precisam esperar o anoitecer. Basta-lhes uma cadeira confortável na biblioteca a qualquer hora” [Mortimer J. Adler, A arte de ler. Rio de Janeiro: Agir, pág. 54.].
E, falando em dispersão, lembro-me que não foi uma só vez que presenciei (e até participei) do seguinte diálogo:
— O que você anda lendo atualmente?
— Estou lendo um livro legal!
— Ah, é? E como se chama?
— Como se chama? Quer dizer... o título dele?
— Isso, o título.
— Esqueci...
— Mas quem é o autor?
— Ah, o autor é... é... Como é mesmo o nome do autor?
— É brasileiro?
— É. Acho que é... Escreve legal...
— Você não lembra do autor nem do título?
— Olha, é um livro dessa largura... e tem capa verde... Mas é legal!
Se a cor da capa e o tamanho são as únicas referências do livro retidas pelo distraído leitor, será que ele está realmente aproveitando a leitura?
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